terça-feira, novembro 29, 2005

291. A TEODORA E O AIRES 

O moço trazia Teodora dentro do peito e foi procurá-la (...) com o fim de afogar duma vez para sempre a sua paixão, ou pô-la a salvo de temporais. O pai acomodava as vacas, a velha entretinha-se com a ceia, puderam ficar à vontade.
─ Teodora ─ disse ele no tom sentido, quase titubeante, de quem joga tudo na vaza ─ temos de falar com os coração nas mãos. Ou, ou...
─ Está bem, dize lá... ─ proferiu ela um pouco no seu modo arisco, para esconder o pesadume.
─ Rosna-se para aí que te viraste para o filho do Antoninho Fráguas. Uma pessoa disse-me: vou-o jurar...
Falava com dificuldade, a escolher caminho. Como a pausa se dilatasse, ela picou:
─ E depois?
─ Devo acreditar que têm razão...?
─ Razão, quem?
─ As bocas do mundo.
─ E tu que julgas?
Soltava as palavras no seu jeito despachado e tom escarnento, que tanto podia exprimir: sim, é verdade, como: não tem pés nem cabeça. Ele tornou, conhecendo-lhe o génio:
─ Não julgo nada. Vês, o sujeitinho agora não sai da tua beira. Perdido e achado é em vossa casa. Ele e o teu pai são como cabeçalho e chavelhão. Para onde for um, vai outro. Suponhamos que semelhante compadrio é devido ao negócio, suponhamos. O que não se compreende é a aceitação que tu lhe dás...
─ Não lhe dou aceitação nenhuma ─ replicou ela com sequidão.
─ Ora essa, não o bispei agarrado a ti a dançar...?! Não me vais dizer que trago cataratas nos olhos ou que andavas forçada...
─ Pois andava e andava mesmo! Não acreditas? Podes acreditar. Meteram-mo à cara. Eu não o chamei. Foi-me cometer para o baile, disse-lhe que não. Teimou. As raparigas em volta: vai, porque não hás-de ir? Meu pai teve ventos da minha má vontade e veio-me ralhar. Aí tens porque me viste a dançar com semelhante meijengro.
O céu e a terra revestiam novo aspecto para o Aires. Entrava-lhe nos pulmões ar fresco, aquela espécie de ar fresco que não vem apenas da atmosfera e embebeda como o melhor vinho. Mesmo assim porfiou:
─ Pois sim, mas para ti não deve ser novidade o que corre a esse respeito. Era uma razão para te negares...
─ Já te disse e torno-te a repetir que não tenho nada com o que os outros pensam. Tenho com a minha palavra e o meu querer e basta.
─ E que palavra é essa, Teodora, que não estou bem lembrado...
─ Assim és esquecido?! ─ proferiu ela num trejeito que transitava repentinamente do sério para o jocoso e regressava logo ao tom primeiro. ─ Que homem és tu para guardar memória de coisas que bolem com a vida toda duma pessoa...?
O Aires quedou um instante em suspensão, hesitante em ler-lhe nos olhos aquilo que tanto buscava. E tartamudo balbuciou:
─ Torna-me a dizer essa palavra, Teodora, que a cabeça não me governa bem. Torna-ma a dizer...
Olhava para ela e como a visse calada, imóvel, de olhos em terra, a sua tortura era atroz. Mais uma razão para definirem suas vidas. E volveu:
─ Dize-ma. Se é o que eu suponho, abençoada seja a luz que nos alumia; se não, paciência; tudo tem fim, viver e sofrer.
─ Dá cá a tua mão... ─ disse ela em voz áspera, como se ditasse uma ordem a que fosse mau cumpridor. ─ Dá cá, que ta não corto...
Pegou-lhe da mão; pô-la em cima dos seios sem aquele pudor com que as raparigas fogem ao toque atrevido dos rapazes; estreitou-a contra a apojadura das pomas, rija, quase tão pétrea como a massa da masseira a ponto de levedar; e numa voz em que latejava não sabia se amor se ira pronunciou:
─ Ouves bater o coração, ouves? Eu te digo o que já não devia ser novo para ti: tua ou de mais ninguém.


Aquilino Ribeiro - Volfrâmio, págs. 226-228, Bertrand Editora, 1985 (a primeira edição é de 1940)


domingo, novembro 27, 2005

290. A NEVE, O PADRE E O LOBO 

Uma noite de Novembro caía neve, e os aspectos do céu profundamente frio tinham umas estrelas trémulas, lucilantes, e um luar álgido que dava às concavidades nevadas a claridade nítida de uns lagos de prata fundida. O padre vestia polainas de saragoça assertoadas, tamancos ferrados e suspensos nas fortes presilhas das polainas, jaqueta de peles e uma carapuça alentejana escarlate, que lhe abafava as orelhas. Debaixo da lapela da véstia resguardava a escorva da clavina, e caminhava curvado com as mãos nas algibeiras e os olhos vigilantes nas gargantas dos serros. Uivos longínquos de lobo ouviam-se e punham-lhe vibrações na espinha, e um terror grande naquela imensa corda de serras, onde ele, àquela hora, se considerava o único ente exposto a ser comido pelas feras esfomeadas. Pulava-lhe o coração. Ao trepar a um outeiro, entaliscado de rochedos que pareciam resvalar de encontro a ele, ouviu o uivo ali perto, para lá da espinha do serro. Tirou a clavina do sovaco, e lívido, com a sensação estranha do fígado despegado, meteu o dedo tremente, automático, no gatilho. Fez um acto de contrição; provava quanto as religiões são importantes, urgentes nas crises, nos conflitos sérios do homem com o lobo. Esperou. A fera assomara na lomba do outeiro, recortando-se esbatida no horizonte branco com uma negrura imóvel, sinistra: parecia um bronze, um emblema de sepulcro. Ela quedou-se por largo espaço num aspecto de admiração, de surpresa. Depois, descaiu sobre as patas traseiras, com ares contemplativos, de uma pacatez fleumática. Mediam trinta passos entre a fera e o frade.

Continue a ler em...
Camilo Castelo Branco - Eusébio Macário, págs 77-78, Edições Caixotim, 2003


sábado, novembro 19, 2005

289. CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa - Poesias, 16.ª edição, pág. 188, Edições Ática, Lisboa, 1997


sexta-feira, novembro 11, 2005

288. ASSOCIAÇÃO CULTURAL, SOCIAL, RECREATIVA E DE DESENVOLVIMENTO DE VILA DIANTEIRA 

11 de Novembro de 2005, 19h 30 min.
O parto foi há pouco...
Formalmente, legalmente... e em dia abençoado de S. Martinho.
Que nós, todos nós de Vila Deanteira, residentes ou espalhados por Portugal e pelo Mundo, saibamos ser dignos da nossa terra.


terça-feira, novembro 08, 2005

287. S. JOÃO DE AREIAS (Alterado) 



Em primeiro plano, uma extensa Quinta, onde já viveram os romanos, produzindo tal como hoje, o mesmo vinho e o mesmo azeite. A seguir, a Casa do Feiticeiro, nela se situa a entrada da célebre gruta de Helbo, o feiticeiro de S. João de Areias, visitado pela rainha Dona Leonor Teles e pelo conde Andeiro. Pertinho, a Igreja Matriz, da segunda metade do século XVIII e com 100 anos de história de talha. Logo abaixo, o casario da vila desce até ao redor do pelourinho e depois até quase junto ao ribeiro que corre no fértil vale. Ao longe, imponente, dominando este local cuja força telúrica-mágico-religiosa nos toca, a Serra da Estrela.

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